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Sombras do passado

A escuridão consumia tudo.

Era um véu faminto, arrastando-se como dedos invisíveis que apagavam a existência pouco a pouco. Primeiro, os detalhes sutis: o brilho dos olhos, o reflexo da luz sobre o metal, a textura da madeira. Depois, vieram os contornos, as formas, as sombras sendo tragadas para um abismo sem fim. O mundo ao redor se esfarelava como tinta diluída em água suja, desmanchando-se em borrões desordenados que se fundiam no nada.

E no meio desse vórtice de esquecimento, um bebê. Pequeno, frágil, ciente demais. Ele via a realidade se despedaçar, seu olhar incapaz de desviar do horror crescente. O chão sobre o qual sua carruagem se movia dissolveu-se em trevas, deixando apenas a sensação incômoda de balanço, como se flutuasse sobre um vácuo faminto.

A mulher que o segurava ainda estava lá. Ou algo que antes havia sido uma mulher. Seu corpo, antes quente e real, agora era uma silhueta disforme, um vulto escuro de contornos indistintos. A cada instante, mais dela era apagado, engolido pela escuridão voraz. Seus braços, seus cabelos, seu rosto... sem expressão, sem cor, sem alma. Apenas a forma fantasmagórica de algo que um dia existira.

O bebê tentou tocá-la, tentou se agarrar ao que restava. Seus dedos pequenos deslizaram pelo vazio, sentindo apenas um frio implacável, um arrepio que sussurrava que nada mais poderia ser salvo.

Então, o silêncio foi rasgado.

Uma flecha cortou a noite eterna, zunindo como um grito de algo perdido no tempo. Atravessou o vazio e encontrou a mulher. O impacto ressoou como vidro estilhaçado. Ela não gritou. Não recuou. Apenas congelou por um instante, enquanto um líquido vermelho e vivo escorria pelo buraco recém-aberto em seu peito.

Sangue. Tão vermelho, tão real. Um contraste brutal contra o negro que devorava tudo. O líquido quente deslizou por sua pele, pingando nos pequenos braços do bebê, marcando-o com um toque de algo que o mundo não deveria mais conter: cor.

Foi quando a porta negra se abriu.

O mundo estremeceu, como se o próprio sonho estivesse sendo rasgado de dentro para fora. Era uma fenda abismal, um rasgo na realidade onde o vácuo se acumulava, pulsante. E, de seu interior, algo emergiu.

Um monstro. Alto, retorcido, sua presença era um peso insuportável sobre a consciência. Mas era o rosto - ou o que fingia ser um rosto - que consumia toda a atenção. Escondido sob uma máscara grotesca, marcada por incontáveis mãos vermelhas, impressas em tons distintos, umas mais vivas, outras desbotadas pelo tempo. Eram tantas que a superfície da máscara já não tinha outra cor, preenchida por camadas de sangue seco e memória. Cada marca era um testemunho, um eco de um passado violento acumulado sobre sua face, uma história narrada em cicatrizes rubras.

E a escuridão continuava a consumir.

A carruagem quebrou. A realidade ao redor do bebê se fragmentou, e ele foi lançado para o abismo. O mundo, uma confusão de cores desbotadas e formas dissolvidas, girava ao seu redor. A montanha à distância se partiu ao meio, sua rocha rachando como uma ferida exposta. O céu, antes preenchido por um manto negro e infinito, agora se desfez em pedaços de um cosmos instável, caindo em espirais desconexas.

O bebê caiu, como uma folha levada pelo vento, sem controle, sem saber onde o peso de seu corpo o conduziria. O grito da realidade se desintegrando ecoava em seus ouvidos, mas sua boca não conseguiu emitir som algum. A sensação de queda era interminável, o vazio abaixo dele se expandindo, cada segundo preenchido por um silêncio denso que fazia seu peito apertar.

E então, o impacto.

Ele mergulhou em um rio furioso, suas águas negras arrastando-o com uma força brutal. O bebê se afundou, sendo arrastado pela correnteza, os dedos pequenos tentando se agarrar a algo, mas a água era implacável. Aos seus olhos, partes de corpos flutuavam, fragmentos de pessoas que haviam se perdido para aquela corrente, vítimas da mesma fúria que ele agora enfrentava.

O pavor se misturava ao desespero. O ar desaparecia de seus pulmões, e o frio da água invadia cada fibra de seu ser. Ele lutou, mas cada tentativa de se manter à tona era em vão. Os fragmentos humanos ao seu redor pareciam se arrastar em um pesadelo sem fim, cada pedaço de carne que flutuava ali uma lembrança daquilo que havia sido engolido pela escuridão. Ele sentia o peso do tempo e da morte em seu próprio corpo, e o medo tomava forma em sua mente, como uma prisão sem saída.

Ele se afogou. O mundo ao seu redor se fechou em torno dele, e a escuridão, finalmente, o consumiu por completo.

E então, acordou.

Nwyn acordou com o som pesado de sua respiração, o mesmo ruído abafado que sempre o acompanhava após os pesadelos. O calor abafado da casa pequena parecia envolver o ar com um peso insuportável. O cheiro de mofo misturado com suor e o fedor de algo queimado estava impregnado nas paredes de madeira envelhecida. O garoto levantou lentamente, como se o próprio ato de sair da cama fosse um esforço monumental. Sua pele estava marcada por picadas de pulgas, e o desconforto parecia se infiltrar em seus ossos, mas ele já não sentia mais raiva disso. A sensação de sujeira era apenas mais uma parte do ambiente, uma extensão da sua indiferença.

Com passos arrastados, ele foi até a sala, onde o silêncio da casa se fazia pesado, como se o próprio lugar estivesse sendo engolido pelo tempo. Quando chegou à porta, o som de algo sendo arremessado no chão, seguido por um suspiro cansado, chegou aos seus ouvidos. Ele não tinha pressa de sair, mas sentiu o impulso de ver o que acontecia lá fora.

Leny estava no galpão dos porcos, agachado sobre uma porca caída. Ele observava o animal com atenção, mexendo nas patas dela, tentando entender o que estava errado. As mãos do velho fazendeiro estavam sujas, não só de terra, mas também de algo vermelho que Nwyn reconheceu como sangue. Leny se levantou devagar, como se o esforço de lidar com aquele animal fosse quase um fardo a mais em seu dia.

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O garoto se aproximou em silêncio. Leny olhou pra ele por um momento, levantando uma sobrancelha, mas não parecia surpreso.

– Esse porco aqui... tá mal. – A voz rouca de Leny soou cansada. – Não sei o que é, mas ela não tem mais forças, e tá sangrando pelo focinho.

O garoto parou ao lado dele e olhou a porca caída. Leny lançou um olhar vago na direção dele, como se o peso da manhã já tivesse sido o suficiente para drenar sua paciência. O velho fez um gesto desanimado com a mão, afastando a poeira do galpão enquanto se levantava com esforço.

– Vou pra Central, levar umas batatas, repolho, carne seca. E as ferramentas também, aquelas velhas que já não servem pra nada. Se eu não vender logo, vou acabar usando tudo até apodrecer. – Ele respirou fundo, a voz era cansada, mas direta. – Preciso comprar remédio pros porco. Se eles morrerem, a gente vai ter um inverno difícil.

O garoto, com a voz controlada e sem o tom de quem fazia birra, falou:

– Posso ir com você. Não dá pra ficar aqui trancado o dia todo. E além disso, quero ver o Garlei.

A expressão de Leny ficou um pouco mais suave, mas a decisão ainda não parecia fácil.

– Tá certo... – Ele murmurou, mais para si mesmo, antes de suspirar. – Mas não pense que vai ser um passeio. Vou ter que pedir para Ben cuidar da fazenda.

O garoto assentiu, sem mostrar nenhum entusiasmo exagerado, mas a ideia de encontrar Garlei, ainda que por pouco tempo, trouxe um leve alívio para ele.

– Entendido. Vou ajudar com o que for preciso.

O velho franziu a testa, mas não disse mais nada. Ele estava resoluto, embora o desgaste da vida simples e das responsabilidades ficasse claro em seu semblante. – Vamos amanhã. E nada de ficar perambulando pela cidade, ocê vai fazer o que eu mandar.

Ele apenas acenou com a cabeça, sem retrucar. Já sabendo que a viagem seria breve, mas, ao menos por um tempo, poderia escapar da monotonia daquela fazenda e, quem sabe, reviver algo do que havia perdido ao longo dos últimos anos. Ele passou o resto do dia ocupado com as tarefas da fazenda. O trabalho era repetitivo, mas familiar. Alimentou as galinhas, verificou os baldes de água e ajudou Leny a separar as ferramentas velhas que seriam levadas para a Central. O sol se pôs, e a noite caiu sobre a terra seca. Ele comeu em silêncio e foi dormir cedo, pois sabia que a viagem do dia seguinte seria longa.

O despertar foi brusco. O corpo de Nwyn estava coberto de suor frio, e seu peito subia e descia rapidamente. O sonho o deixara inquieto, mas como sempre, os detalhes pareciam escapar de sua mente assim que ele tentava se lembrar.

Ele saiu do quarto, sentindo o ar fresco da manhã. Leny já estava de pé, conversando com Benedito, que havia parado na fazenda logo cedo. O velho fazendeiro de pele negra coçava a barba rala enquanto falava, e Leny, com os braços cruzados, ouvia com seu jeito carrancudo de sempre.

– Uns soldados passaram pela minha terra ontem à noite. – disse Ben. – Tavam indo pro norte, então num vão passar por aqui.

Leny grunhiu. – Hmpf. Melhor assim. Esse povo só traz problema.

Nwyn se aproximou, ouvindo enquanto Ben falava um pouco mais sobre a movimentação dos soldados. A conversa logo foi para a relação entre a Central e o Reino de Linteal.

A Central nascera de uma única fazenda, pertencente a uma família rica, os Forten, que cultivava nos solos férteis da região. Com o tempo, trabalhadores foram chegando, formando pequenas comunidades ao redor das lavouras. Os mercados cresceram, comerciantes se estabeleceram, e logo a cidade emergiu, tornando-se um polo de trocas e negócios.

O Reino de Linteal nunca viu a Central com bons olhos. Eles a consideravam um possível inimigo, mas atacar diretamente seria um risco. As guildas de bandidos, mercenários e assassinos tinham grande interesse no comércio da Central e não hesitariam em defendê-la caso o Reino tentasse algo. Da mesma forma, a Central não ousava atacar Linteal. O reino possuía muralhas colossais protegendo sua capital, e além dessas muralhas, favelas miseráveis se espalhavam, um lembrete da leve semelhança de ambos, já que as vielas de Linteal nasceram por conta dos comércios que nasceram ao redor dos muros brancos, mas ao contrario da Central, não eram por conta do trabalho na lavoura, mas sim pelos cercos constantes que nunca conseguiram ultrapassar os limites do reino.

– Num duvido que esses soldados tavam indo resolver alguma treta por lá. Disse Benedito, cuspindo no chão. – Mas isso num é problema nosso. O que importa é que o inverno tá chegando e a gente precisa garantir comida.

Leny assentiu. – Vamo logo tratar disso. Quanto mais cedo chegarmos na Central, melhor.

Ben apertou a mão de Leny com força, assentindo devagar. – Já que ocê vai pra lá... vê se consegue me arranjar umas sementes decentes. Essa terra tá ingrata, e as que eu tenho num vingam direito.

Leny resmungou algo inaudível e jogou o chapéu mais para trás na cabeça. – Vou vê o que dá pra fazê.

Nwyn permaneceu um pouco afastado, observando os dois conversarem. Ben olhou para ele de soslaio e coçou a barba curta. – E ocê, garoto? Quer que eu cuide de alguma coisa?

Ele balançou a cabeça. – Não, só cuida bem dos porcos.

Ben riu pelo nariz. – Ah, esses bichos dão mais trabalho que filho teimoso. Pode deixá.

Depois de uma despedida rápida, Benedito partiu, caminhando pela estrada de terra até sumir entre as árvores secas, voltaria mais tarde para dar uma olhada em tudo, agora iria completar suas próprias tarefas. Leny ficou observando por um momento, depois cuspiu no chão e virou-se para a carroça.

O veículo era velho, a madeira castigada pelo tempo, mas ainda resistia. Era puxado por um cavalo de pelagem escura, um animal magro, mas forte. Leny passou a mão na crina do bicho, murmurando algo, antes de verificar as amarras e o estado das rodas.

Enquanto isso, o garoto voltou para dentro da casa. Havia algo mais que precisava levar. Embaixo da cama, no fundo de um buraco discreto na madeira do assoalho, pegou um pequeno embrulho escondido, enrolado com cuidado. Escondeu-o sob a roupa, sentindo o peso leve contra a pele. Então, respirou fundo e saiu, sem olhar para trás.

Ao voltar, encontrou Leny subindo na carroça, ajeitando-se no banco de madeira. Nwyn escalou para o lado dele, sentindo o cheiro de suor e couro envelhecido.

Antes de partirem, ele pegou as poucas moedas que guardava há tempos. Planejava comprar algo doce na Central, um pequeno luxo. Mas, assim que as moedas brilharam em sua mão, Leny notou.

– O que ocê tá fazendo com isso aí? – A voz dele saiu firme, um peso por trás das palavras.

– Só ia comprar uma cois...

– Num tem disso, não. Dá aqui. – Leny estendeu a mão, os dedos calejados esperando.

Nwyn hesitou. – Mas é meu dinhei...

– Dá logo, rapaz. Os porco doente e tu querendo gastar com bobagem.

Havia algo no olhar do velho que não deixava espaço para discussão. Com um nó na garganta, Nwyn entregou as moedas. Leny as guardou no bolso sem dizer mais nada, sem agradecer, sem explicação. O silêncio se instalou entre eles, denso, carregado.

O fazendeiro estalou a língua, sacudiu as rédeas e o cavalo começou a andar. O rangido da carroça preencheu o vazio entre os dois. Nwyn olhava para frente, os pensamentos rodando. Ele poderia simplesmente não voltar. A Central era grande, havia trabalho por lá. Talvez pudesse se virar, encontrar um canto, uma ocupação. A ideia se formava devagar, insistente, enquanto a poeira da estrada se levantava ao redor deles. 

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