Como adepto da exploração urbana, sou, também, um apreciador de arte de rua. Ao longo dos anos, tive a oportunidade de conhecer vários artistas, com os quais me mantive em contacto. Um dia, durante uma conversa por chat com um deles, descobri algo estranho.
Quem conhece a Estação de Campanhã, no Porto, sabe que esta está rodeada por uma enorme infraestrutura de cimento. O que a maioria das pessoas desconhece é que esta oculta uma enorme rede de túneis de serviço, parte da qual já tinha tido a oportunidade de explorar.
Como seria de esperar, artistas de rua conseguiram entrar em alguns destes túneis e aproveitaram as paredes para praticar a sua arte.
Foi durante uma destas visitas que o meu amigo e mais alguns colegas se depararam com algo de muito estranho. Num dos túneis, encontraram um gato. Isto nada teria de excecional, não fosse o facto de o animal não sair do mesmo sítio há meses e repetir constantemente os mesmos movimentos.
Depois de tudo o que tinha visto desde que encontrara o diário, não podia deixar de ir investigar. Combinei uma hora com o meu amigo e apanhei o comboio de Braga até Campanhã.
Quando lá cheguei, ele levou-me diretamente para o túnel. A porta metálica encontrava-se junto à berma da linha, a uns trezentos metros da estação, e estava escancarada, dando acesso fácil ao interior. Lá dentro, as paredes e até o teto estavam cobertos de grafitos de estilo variado. De simples “tags” a elaborados murais, via-se ali de tudo.
Adentrámo-nos no túnel durante várias dezenas de metros, até que chegámos a uma parte onde este se abria à direita. Nessa direção, havia um largo poço, cujo propósito ninguém parecia perceber.
– É aí que está o gato – disse-me o meu amigo.
Apontei a lanterna para o fundo, uns oito metros mais abaixo, e logo avistei o animal. Realmente, parecia um gato comum, cinzento e branco. Fiquei a observá-lo durante uns minutos. Durante esse tempo, permaneceu quase imóvel, sentado no chão, movendo-se apenas ocasionalmente em intervalos que me pareceram regulares para lamber uma das patas da frente, sempre a mesma.
Atrás do animal, encontrei uma porta de ferro, mas esta encontrava-se enferrujada e não parecia ser usada há anos. De facto, duvidava que fosse possível sequer abri-la, pelo menos não sem a destruir.
– Desde que o descobrimos, há quatro meses, que está ali sempre a fazer o mesmo – contou o meu amigo. – Um gato normal já tinha morrido à fome.
Tive de concordar com ele. Aquele gato podia não constar do diário que eu encontrara, mas merecia constar.
– Eu trouxe uma corda – disse eu, apontando para a mochila nas minhas costas. – Podemos descer para ver melhor.
– Parece-me bem.
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Nesse momento, dois outros artistas que pintavam junto a nós aproximaram-se e um deles disse:
– Podemos ir convosco? Também estamos curiosos com o gato.
– À vontade – respondeu o meu amigo.
Tirei, então, a corda da mochila e prendi-a a uma viga de cimento situada quase diretamente por cima do poço. Deixei que cada um dos meus companheiros testasse o nó e, assim que ficaram satisfeitos, começamos a descer. O artista que me chamara ali foi o primeiro a descer, seguido por mim e só então pelos dois que nos abordaram.
Durante tudo isto, o gato manteve-se imperturbado, lambendo apenas a pata algumas vezes. Não se mostrava só indiferente à nossa presença, era como se não estivéssemos ali.
Andamos à volta dele, observando-o atentamente, mas, fisicamente, nada o distinguia de um gato comum. Não fosse o seu estranho comportamento e o facto de estar naquele poço há tanto tempo, ninguém lhe teria prestado nenhuma atenção.
Inspecionei, também, a porta enferrujada e confirmei que esta estava tão perra que era impossível movê-la.
Finalmente, a curiosidade levou a melhor de um dos artistas que se juntara a nós e ele tentou tocar no animal. Para nossa surpresa, a sua mão atravessou o gato como se não estivesse nada ali, enquanto este permaneceu imóvel, como se nada fosse.
Recuamos. Não sabíamos o que era aquela criatura ou o que podia fazer. Depois de tudo o que vira antes, eu era o menos alarmado dos quatro. Os meus acompanhantes pareciam aterrados.
– É um fantasma! – disse um dos homens que se haviam juntado a nós.
Como eu podia atestar, era uma boa possibilidade. Contudo, não disse nada. Eles já tinham sofrido um grande choque, não havia necessidade de o agravar.
– Que fazemos agora? – perguntou o meu amigo. – Avisamos alguém?
Antes de alguém conseguir responder, o homem que tentara tocar no gato começou a gritar desesperadamente.
– Que se passa? – perguntou o companheiro dele, mas ele apenas continuou a gritar.
Os seus gritos eram tão intensos que me faziam doer os ouvidos. Começou, então, a correr em círculos à volta do poço, como se estivesse a tentar fugir de algo, mas não soubesse para onde ir. Finalmente, tentou subir a corda, mas caiu ao fim de pouco mais de um metro, ficando sentado no chão e encostado à parede.
Juntamo-nos em volta dele para o tentar acalmar e perceber o que se passava, mas ele não parava de gritar.
– Olhem?! – disse o meu amigo de repente, apontando para a mão do caído.
Parte desta já não tinha pele, mostrando os músculos debaixo. Diante dos nossos olhos, estes desapareceram, deixando apenas ossos. Por fim, até estes se desvaneceram.
O homem, finalmente, parou de gritar.
– Estás bem? – perguntou-lhe o amigo.
Ao não obter resposta, tentou tocar-lhe, mas retraiu a mão quando o corpo do caído se esvaziou como um balão. Finalmente, desapareceu por completo. O que quer que o tivesse consumido, fê-lo tanto de fora para dentro como de dentro para fora.
Em pânico, os meus dois acompanhantes que restavam treparam a corda de volta ao túnel e correram para o exterior. Com mais calma, segui-os, deitando um último olhar para o gato, que continuava como se nada se passasse.
Só voltei a falar com o meu amigo dias depois, pelo chat. Ainda estava algo abalado com o que víramos, pelo que apenas lhe dei algum conforto e não lhe contei sobre as coisas igualmente estranhas que havia visto antes e a miríade descrita no diário que eu encontrara.
Contudo, ele contou-me algo de muito interessante. Depois da nossa visita, tentara visitar novamente o túnel, mas descobrira que a entrada deste havia sido selada com cimento.
Quem o fizera? Teria sido a organização de que Alice me falara durante a minha primeira visita ao Bar das Fadas? E como haviam descoberto a existência do gato?
Como sempre, uma das minhas explorações tinha trazido mais perguntas para me atormentar. Infelizmente, estas só aumentavam ainda mais a minha insaciável curiosidade, puxando-me cada vez mais na direção de conhecimento que nenhum ser humano devia possuir.